“Aproximamo-nos, agora,
do que Freud disse de mais profundo sobre a natureza da Triebe, e especialmente na medida em que estes podem fornecer ao
sujeito matéria para a satisfação de mais de uma maneira, nomeadamente deixando
aberta a porta, a via, a carreira da sublimação. Até agora, isso permaneceu, no
pensamento analítico, um domínio quase reservado no qual apenas os mais
audaciosos ousaram tocar e, ainda por cima, não sem manifestar a insatisfação,
a sede em que as formulações de Freud os deixaram. Vamo-nos referir aqui a
alguns textos extraídos de mais de um ponto de sua obra, desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade até
Moisés e o monoteísmo, passando pelo Einführung, as Vorlesungen e o Mal-estar da
civilização.
Freud
incita-nos a refletir sobre a sublimação, ou mais exatamente, propõe-nos, à
maneira pela qual ele mesmo tenta definir seu campo, todo tipo de dificuldades
que merecem que nos detenhamos nela hoje.”
(LACAN, 1986, Seminário 7, p.115)
“Evitei a palavra Objekt. Que no entanto, aparece a todo
instante em sua escrita desde que se trata de diferenciar aquilo de que se
trata no que diz respeito à sublimação.
O que quer que ele faça, não pode qualificar a forma sublimada do
instinto sem referência ao objeto. Vou
ler para vocês daqui a pouco as passagens que lhes mostrarão onde está o móvel
da dificuldade encontrada.
Trata-se do
objeto. Mas, o que quer dizer isso,
objeto, nesse nível? Quando Freud começa,
no início dos modos de acentuação de sua doutrina, em sua primeira tópica, a
articular aquilo que concerne à sublimação, nomeadamente nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
a sublimação caracteriza-se por uma mudança nos objetos, ou na libido, que não
se faz por intermédio de um retorno do recalcado, que não se faz
sintomaticamente, indiretamente, mas diretamente, de uma maneira que se
satisfaz diretamente. A libido vem
encontrar sua satisfação nos objetos
- como distingui-los
inicialmente? Muito simplesmente, muito
massivamente, e, para dizer a verdade, não sem abrir um campo de perplexidade
infinita, como objetos socialmente valorizados, objetos aos quais o grupo pode
dar sua aprovação, uma vez que são objetos de utilidade pública. É desse modo que a possibilidade de
sublimação é definida.”
(LACAN, idem,
p. 119)
“A sociedade encontra
uma certa felicidade nas miragens que lhes fornecem moralistas, artistas,
artesãos, fabricantes de vestidos ou de chapéus, os criadores de formas
imaginárias. Mas não é apenas na sanção
que ela confere a isso, ao se contentar, que devemos buscar o móvel da
sublimação. É na função imaginária,
muito especialmente, aquela a propósito da qual a simbolização da fantasia ($◊a) nos servirá, que é a forma na qual o desejo
do sujeito se apoia.
Nas formas
especificadas historicamente, socialmente, os elementos a, elementos imaginários da fantasia, vêm recobrir, engodar o
sujeito no ponto mesmo de das Ding. É aqui que faremos incidir a questão da
sublimação, e é por isso que lhes falarei, da próxima vez, do amor cortês na
Idade Média e nomeadamente Minnesang.”
(LACAN, idem,
p.126)
“Reparem que não há
avaliação correta possível da sublimação na arte se não pensamos nisso - que
toda a produção da arte, especialmente das Belas-Artes, é historicamente
datada. Não se pinta na época de Picasso
como se pintava na época de Velásquez, não se escreve tampouco um romance em
1930 como se escrevia no tempo de Stendhal.
Este é um elemento absolutamente essencial que não devemos, por
enquanto, conotar no registro do coletivo ou do individual -
coloquemo-lo no registro do cultural.
O que é que a sociedade pode aí encontrar de satisfatório? É o que para nós se encontra agora colocado
em questão.
É aí que reside o
problema da sublimação, uma vez que é criadora de um certo número de formas, da
qual a arte não é a única - e para nós tratar-se-á de uma arte em
particular, a arte literária, tão próxima para nós do domínio ético. Pois é em função do problema ético que
devemos julgar essa sublimação enquanto criadora de tais valores, socialmente
reconhecidos.”
(LACAN, idem,
p.135)
“Era uma coleção que se
podia facilmente fazer nessa época, era talvez mesmo tudo o que havia para se
colecionar. Só que as caixas de fósforos se apresentavam desta maneira -
todas eram as mesmas e dispostas de uma maneira extremamente graciosa
que consistia no fato de que, cada uma tendo sido aproximada da outra por um
ligeiro deslocamento da gaveta interior, se encaixavam umas nas outras,
formando uma fita coerente que corria sobre o rebordo da lareira, subia na
murada, passava de ponta a ponta pelas cimalhas e descia de novo ao longo de
uma porta. Não digo que ia desse modo ao
infinito, mas era excessivamente satisfatório do ponto de vista
ornamental.
Não creio, todavia, que
isso fosse o principal e a substância do que esse colecionismo tinha de
surpreendente, e a satisfação que daí poderia obter aquele que era responsável
por isso. Creio que o choque, a
novidade, do efeito realizado por esse ajuntamento de caixas de fósforos
vazias -
esse ponto é essencial - era de fazer aparecer isto, no qual talvez
nos detenhamos demasiadamente pouco, é que uma caixa de fósforos não é de modo
algum simplesmente um objeto, mas pode, sob a forma, Erscheinung, em que estava proposta em sua multiplicidade
verdadeiramente imponente, ser uma Coisa.”
(LACAN, idem,
p.143)
“Aqui está nosso
encontro marcado com o emprego da linguagem que, pelo menos para a sublimação
da arte, nunca hesita em falar de criação. A noção de criação deve ser
promovida agora por nós, com o que ela comporta, um saber da criatura e do
criador, pois ele é central não apenas em nosso tema, o motivo da sublimação,
mas no da ética no sentido mais amplo.
Estabeleço isto - um
objeto pode preencher essa função que lhe permite não evitar a Coisa como significante, mas
representá-la na medida em que esse objeto é criado. Por meio de um apólogo que nos é fornecido
pela corrente das gerações, e que nada nos proíbe utilizar, vamo-nos referir à
função artística talvez mais primitiva, a do oleiro.”
(LACAN, idem,
p.150-1)
“Quero simplesmente,
hoje, ater-nos à distinção elementar, no vaso, entre seu emprego de utensílio e
sua função significante. Se ele é deveras significante e se é o primeiro
significante modelado pelas mãos do homem, ele não é significante, em sua
essência de significante, de outra coisa senão de tudo o que é
significante - em outros termos, de nada particularmente
significado. Heidegger o coloca no
centro da essência do céu e da terra.
Ele vincula primitivamente pela virtude do ato de libação, pelo fato de sua dupla orientação - para
cima para receber, em relação à terra da qual ele eleva alguma coisa. É justamente esta a função do vaso.
Esse nada de particular
que o caracteriza em sua função significante é justamente, em sua forma
encarnada, aquilo que caracteriza o vaso como tal. É justamente o vazio que ele cria,
introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê-lo. O vazio e o pleno são introduzidos pelo vaso
num mundo que, por si mesmo, não conhece semelhante. É a partir desse significante modelado que é
o vaso, que o vazio e o pleno entram como tais no mundo, nem mais nem menos, e
com o mesmo sentido.”
(LACAN, idem,
p.151-2)
“Essa Coisa é acessível
em exemplos muito elementares que são quase da natureza da demonstração
filosófica clássica, com a ajuda do quadro-negro e do pedaço de giz. Da última vez, tomei o exemplo esquemático do
vaso para permitir-lhes apreender onde se situa a Coisa na relação que coloca o
homem em função do medium entre o
real e o significante. Essa Coisa, da
qual todas as formas criadas pelo homem são do registro da sublimação, será
sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa - ou,
mais exatamente, de ela não poder ser representada senão por outra coisa. Mas, em toda forma de sublimação, o vazio
será determinante.”
(LACAN, idem,
p.162)
“Estou dizendo,
portanto, que o interesse pela anamorfose é descrito como o ponto de virada em
que, dessa ilusão do espaço, o artista reverte completamente sua utilização e
se esforça para fazê-la entrar na meta primitiva, ou seja, de fazer dela o
suporte dessa realidade enquanto escondida - uma vez que, de uma certa maneira,
numa obra de arte trata-se sempre de cingir a Coisa.
Isso nos permite
abordar um pouco mais de perto essa questão não resolvida referente aos fins da
arte -
a finalidade da arte é de imitar ou de não imitar? A arte
imita o que ela representa? Quando
entramos nessa maneira de colocar a questão, já estamos enredados e não há
nenhum meio de não permanecer no impasse em que estamos entre a arte figurativa
e a arte abstrata.”
(LACAN, idem,
p.175)
“O que nos interessa do
ponto de vista da estrutura é que uma atividade de criação poética possa ter
exercido uma influência determinante - secundariamente em seus prolongamentos
históricos - nos costumes, num momento em que a origem e as palavras chaves do
assunto foram esquecidas. Mas não podemos julgar da função dessa criação
sublimada senão nos balizamentos de estrutura.
O objeto, nomeadamente
aqui o objeto feminino, se introduz pela porta mui singular da privação, da
inacessibilidade. Qualquer que seja a
posição social daquele que funciona nesse registro -
alguns são por vezes servidores
- sirvens, com respeito a seu nascimento -
Bernardo de Ventadour, por exemplo, era filho de um servidor no castelo
de Ventadour, ele também trovador -, a
inacessibilidade do objeto é aí colocada desde o início.
Não há possibilidade de
cantar a Dama, em sua posição poética sem o pressuposto de uma barreira que a
cerque e a isole.
Por outro lado, esse
objeto, a Domnei como é chamada, mas ela é frequentemente invocada por um
termo masculinizado - Mi Dom,
isto é, meu senhor - essa
Dama é apresentada, portanto, com caracteres despersonalizados, de tal forma
que autores puderam notar que todos parecem dirigir-se à mesma pessoa.”
(LACAN, idem,
p.185)
“A sublimação não é, com
efeito, o que um zé povinho acha e nem sempre se exerce obrigatoriamente no
sentido do sublime. A mudança de objeto
não faz desaparecer forçosamente, bem longe disso, o objeto sexual - o
objeto sexual, ressaltado como tal, pode vir à luz na sublimação. O jogo sexual mais cru pode ser objeto de uma
poesia sem que esta perca, no entanto, uma visada sublimadora.”
(LACAN, idem,
p.198)
“Quanto a isso, Freud foi
de uma prudência singular. Sobre a natureza do que se manifesta de criação no
belo, o analista, segundo ele, nada tem a dizer. No domínio cifrado do valor da
obra de arte, encontramo-nos numa posição que não é nem mesmo a dos colegiais,
mas de catadores de migalhas. Não é só isso, e o texto de Freud se mostra muito
fraco a esse respeito. A definição que ele dá da sublimação em jogo na criação
do artista só faz mostrar-nos a contrapartida, diria, o retorno dos efeitos do
que ocorre no nível da sublimação da pulsão, quando o resultado, a obra do
criador de belo, retorna para o campo dos bens, ou seja, quando se tornaram
mercadorias. É bem preciso dizer que o resumo que Freud nos dá do que é a
carreira do artista é quase grotesca
- o artista, diz ele, dá forma
bela ao desejo proibido, para que cada um comprando dele seu pequeno produto de
arte, recompense e sancione sua audácia.
Isso é justamente uma maneira de abordar o problema por um atalho. E Freud, aliás, tem perfeitamente consciência
dos limites nos quais ele se confina, de uma maneira manifestamente visível quando
se acrescenta a isso o problema da criação, já que ele o afasta como sendo fora
do alcance de nossa experiência.”
(LACAN, idem,
p.289)
“De fato, não
esqueçamos de que o termo de catarse permanece singularmente isolado na Poética, onde o recolhemos. Não que ele
aí não seja desenvolvido e comentado, mas até a descoberta de um novo papiro,
nada saberemos sobre ele. Pois, suponho que o saibam, da Poética temos apenas uma parte, aproximadamente a metade. E na metade que temos, não há nada mais além
desse trecho que nos fale da catarse.
Sabemos que há mais sobre ela, pois Aristóteles diz, no livro VIII na
numeração da grande edição clássica Didot da Política - Essa
catarse sobre a qual me expliquei em outro lugar na Poética. Trata-se, no livro VIII, da catarse com
respeito à música, e é aí que, devido ao acaso das coisas, aprendemos muito
mais sobre ela.
A catarse é aqui
apaziguamento, obtido a partir de uma certa música, da qual Aristóteles não espera o efeito ético,
nem tampouco tal efeito prático, mas o efeito de entusiasmo. Trata-se então da música mais inquietante,
daquela que lhes arrancava as tripas, que os fazia sair de si mesmos, como para
nós o hot ou o rock’n roll, e quanto à qual tratava-se de saber para a sabedoria
antiga se era preciso ou não proibi-la.”
(LACAN, idem,
p.298)
“Essa visada se dirige
a uma imagem que detém não sei que mistério até aqui não articulado, já que ele
fazia os olhos pestanejar num momento em que se a olhava. Essa imagem está, no
entanto, no centro da tragédia, visto que é a imagem fascinante da própria
Antígona. Pois bem, sabemos que para além dos diálogos, para além da família e
da pátria, para além dos desenvolvimentos moralizadores, é ela que nos fascina,
em seu brilho insuportável, naquilo que ela tem que nos retém e, ao mesmo
tempo, nos interdita, no sentido em que isso nos intimida, no que ela tem de
desnorteante - essa vítima tão terrivelmente voluntária.
É do lado dessa atração
que devemos procurar o verdadeiro sentido, o verdadeiro mistério, o verdadeiro
alcance da tragédia - do lado dessa comoção que ela comporta, do
lado das paixões certamente, mas das paixões singulares que são o temor e a
piedade, já que por seu intermédio di ‘eleou kai phobou, pelo intermédio da
piedade e do temor somos purgados, purificados de tudo o que é dessa ordem.”
(LACAN, idem,
p.300)
“Isso estoura no
momento em que Creonte decreta o suplício ao qual Antígona será destinada - ela
vai entrar viva na tumba, o que não é uma imaginação das mais
regozijantes. Asseguro-lhes que em Sade
isso é colocado no sétimo ou oitavo grau das provas dos heróis, é preciso com
certeza esta referência para que vocês se deem conta da importância da
coisa. É precisamente nesse momento que
o Coro diz literalmente - Esta história deixa-nos loucos, largamos
tudo, perdemos a cabeça, por esta menina estamos apossados pelo que o texto
chama, com um termo cuja propriedade rogo-lhes reter, de ímeros enarges.
Ímeros
é o mesmo termo que, em Fedra,
designa o que tento apreender aqui como o reflexo do desejo na medida em que
ele cativa até mesmo os deuses. É o
termo utilizado por Júpiter para designar suas relações com Ganimedes. Ímeros
enarges é literalmente o desejo tornado visível. Tal é o que aparece no momento em que vai-se
desenrolar a longa cena da subida ao suplício.
Após o canto de
Antígona, no qual se intromete o trecho discutido por Goethe do qual lhes falei
outro dia, o Coro retoma com um canto mitológico em que, em três tempos, ele
faz aparecer três destinos especialmente dramáticos, que são orquestrados nesse
limite entre a vida e a morte, do cadáver ainda animado. Encontra-se na própria boca de Antígona a
imagem de Níobe que, presa num estreitamento do rochedo, permanecerá
eternamente exposta às injúrias da chuva e do tempo. Tal é a imagem limite em torno da qual gira o
eixo da peça.”
(LACAN, idem,
p.324)
“É também de lá que a
imagem de Antígona aparece-nos sob o aspecto que, literalmente, diz-nos ele,
faz o Coro perder a cabeça, inflige as justas injustiças, e faz o Coro transpor
todos os limites, jogar fora todo o respeito que ele pode ter pelos editos da
Cidade. Nada é mais comovente do que
esse Hímeros enarges, esse desejo
visível que se depreende das pálpebras da admirável moça.
A iluminação violenta,
o clarão da beleza coincidem com o momento de franqueamento, de realização da Até de Antígona, eis o traço ao qual
eminentemente dei relevância, e que nos introduziu na função exemplar do
problema de Antígona para determinar a função de certos efeitos. É por meio disso que se estabelece para nós
uma certa relação ao para-além do campo central, mas igualmente o que nos
impede de ver sua verdadeira natureza, o que nos ofusca e nos separa de sua
verdadeira função. O aspecto comovente
da beleza faz vacilar todo juízo crítico, detém a análise, e mergulha as
diferentes formas em jogo numa certa confusão, ou de preferência num cegamento
essencial.”
(LACAN, idem, p.340)
“Hímeros enarges, é aí que está a miragem
central que, ao mesmo tempo, indica o lugar do desejo na medida em que é desejo
de nada, relação do homem com sua falta a ser, e impede de ver esse lugar.”
(LACAN, idem, p.357)