LEONARDO DAVINCI
“Vocês sabem, o fato de que a sublimação é uma tendência que incide
sobre objetos que não são os objetos primitivos, mas os objetos mais elevados
do que é oferecido à consideração humana e inter-humana, Freud só acrescentou
mais tarde algumas complementações, mostrando o papel que podia desempenhar a
sublimação na instauração dos interesses do eu.
Este termo, sublimação,
foi desde então retomado por um certo número de autores da comunidade
psicanalítica, que o ligam à noção de neutralização, de desinstintualização do
instinto.Devo dizer que aí está algo de muito difícil de conceber: uma
deslibidinação da libido, uma desagressivação da agressividade. Eis os termos
mais amáveis que vemos, mais correntemente, florescer sob a pena de Hartmann e
Loewenstein. Praticamente, não nos esclarecem sobre o mecanismo da sublimação.
O interesse de um
estudo como o de Leonardo da Vinci por Freud é que nós podemos, ali, tomar
algumas idéias, pelo menos iniciar uma
reflexão que nos pode permitir fazer repousar o termo sublimação sobre uma base
mais estruturada que a noção de um instinto que se desinstintualiza, até mesmo
de um objeto que, como se diz, se torna mais sublime: pois pareceria, ao
acompanhar nossos psicólogos do ego,
que seja o Stuff da
sublimação”. (Lacan, 1956-57, Sem. 4, p. 442)
“Leonardo Da Vinci foi
ele próprio objeto de uma idealização, senão de uma sublimação, que começou
durante sua vida, e que tende a fazer dele uma espécie de gênio universal e,
além disso, precursor espantoso do pensamento moderno. Isso é o que sustentam
alguns, e mesmo críticos muitos eruditos, que começaram – como Freud, alias – a
deslindar o problema. Outros fazem o mesmo em planos diversos do da arte.
Duhem, por exemplo, diz que Leonardo da Vinci havia entrevisto a lei da queda
dos corpos, ou mesmo o princípio da inércia. Um exame um pouco rigoroso do
ponto de vista da história das ciências mostra que não é nada disso, Todavia, é
claro que Leonardo da Vinci fez descobertas surpreendentes, e que os desenhos
que ele nos deixa na ordem da cinemática, da dinâmica, da mecânica,da
balística, dão conta, com freqüência, de uma percepção extraordinariamente pertinente, muito à frente de seu tempo, o
que não nos permite de modo algum acreditar que não houvesse, em todos estes
planos, trabalhos já muito adiantados na matematização,especialmente, por
exemplo, da cinemática.” (p. 443)
“Parece vir à idéia
que, correlativamente a toda sublimação,isto é, ao processo de dessubjetivação
ou de naturalização do Outro que constituiria seu fenômeno essencial, vê-s
sempre se produzir, no nível do imaginário, sob ma forma mais ou menos
acentuada conforme a maior ou menor perfeição desta sublimação, uma inversão
das relações entre o eu e o outro.
Teríamos realmente, assim, no caso de Leonardo
da Vinci, alguém que se dirige e comanda a si mesmo a partir de seu outro
imaginário. Sua escrita em seu espelho estaria ligada,pura e simplesmente, à
sua própria posição diante de si mesmo. Teríamos aqui o mesmo tipo de alienação
radical daquela sobre a qual concluí meu último seminário a propósito da
amnésia do pequeno Hans.
Estas era, então, uma
questão que eu formulava. É também com uma questão que vou terminar hoje: a de
saber se o processo que chamamos de sublimação, ou psicologização, ou
alienação, ou egotização, não comporta, em sua própria direção, uma dimensão
correlata, aquela pela qual o ser esquece a si mesmo como objeto imaginário do
outro.
Com efeito, existe para
o ser uma possibilidade fundamental de esquecimento no eu (moi)
imaginário”. (p.450)
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HOLBEIN
“Vou agora fazer circular entre vocês
algo que data de uma centena de anos antes, 1533, uma reprodução de um quadro
que, penso, todos vocês conhecem – Os Embaixadores, pintado por Hans Holbein.
Os que o conhecem poderão rememorá-lo
pela reprodução. Os que não o conhecem deverão considerá-lo com atenção.
Voltarei a isto daqui a pouco”.
(Lacan,
1964-65, p.85)
“No quadro de Holbein, logo lhes mostrei
– sem mais dissimular, do que tenho hábito de fazer, a outra face das cartas –
o singular objeto flutuando no primeiro no primeiro plano, que está lá para
olhar, para pegar, quase diria, para pegar
na armadilha, aquele que olha, quer
dizer, nós. É, em suma, um modo manifesto, sem dúvida excepcional e devido a
não sei que momento de reflexão do pintor, de nos mostrar que, enquanto
sujeito, estamos para dentro do quadro literalmente chamados, e aqui
representados como pegos. Pois o segredo desse quadro, de que lhes lembrei as
ressonâncias, o parentesco com as vanitas,
desse quadro fascinante por apresentar, entre dois personagens paramentados e
fixados, tudo que relembra, na perspectiva da época, a vaidade das artes e das
ciências – o segredo desse quadro é dado no momento em que, afastando-nos
ligeiramente dele, pouco a pouco, para a esquerda, e depois nos voltando, vemos
o que significa o objeto flutuante mágico. Ele nos reflete nosso próprio nada,
na figura do crânio de caveira. Utilização, portanto, da dimensão geometral da
visão para cativar o sujeito, relação evidente ao desejo que, no entanto, resta
enigmático”. (p.91)
“A função do quadro – em relação àquele
a quem o pintor, literalmente dá a ver seu quadro – tem uma relação com o
olhar. Essa relação não é, como pareceria à primeira vista, de ser armadilha de
olhar. Poderíamos crer que, como o ator, o pintor visa ao você-me-viu, e deseja
ser olhado. Não creio nisto. Creio que há uma relação ao olhar do aficionado,
mas que é mais complexa. O pintor, àquele que deverá estar diante de seu
quadro, oferece algo que em toda parte, pelo menos, da pintura, poderia
resumir-se assim – Queres olhar? Pois
bem, veja então isso! Ele oferece algo como pastagem para o olho, mas
convida aquele a quem o quadro é apresentado a depor ali o seu olhar, como se
depõem as armas. Aí está o efeito pacificador, apolíneo, da pintura. Algo é
dado não tanto ao olhar quanto ao olho, algo que comporta abandono, deposição
do olhar.(p.99)
“O que é que nos seduz e nos satisfaz no
trompe-l’oeil? Quando é que ele nos
cativa e nos põe em jubilação? No momento em que, por um simples desdobramento
de nosso olhar, podemos nos dar conta de que a representação não se move com
ele, e que ali há apenas trompe-l’oeil.
Pois nesse momento ele aparece como sendo coisa diferente daquilo pelo que ele
se dava, ou melhor, ele se dá agora como sendo essa outra coisa. O quadro não
rivaliza com a aparência, ele rivaliza com o que Platão nos designa mais além
da aparência como sendo a Ideia. É porque o quadro é essa aparência que diz que
ela é o que dá aparência, que Platão se insurge contra a pintura como contra
uma atividade rival da sua.(p.109)
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MUNCH
“Para aqueles que hesitariam, encarno o
que quero dizer – penso na pintura de um Munch, de um James Ensor, de um Kubin,
ou ainda nessa pintura que, curiosamente, poderíamos situar de maneira
geográfica como tendo sede no que em nossos dias se concentra da pintura de
Paris. Em que dia veremos serem forçados os limites desta sede? – é mesmo, se
acredito no pintor André Masson com quem falava disso recentemente, a questão
mais atual. Pois bem, indicar referências como essas, não é de modo algum
entrar no jogo histórico, movente, da crítica, a qual tenta sacar qual seja a
função da pintura num dado momento, em tal autor ou em tal tempo. Para mim, é
no princípio radical da função dessa bela-arte que tendo me colocar. (p. 107)
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CÉZANNE
“Sublinho primeiro que foi partindo da
pintura que Maurice Merleau-Ponty foi mais especialmente levado a inverter a
relação que, desde sempre, foi feita pelo pensamento, entre o olho e o espírito.
Que a função do pintor é coisa completamente diferente da organização do campo
da representação em que o filósofo nos mantinha em nosso estatuto de sujeito, é
isto que ele demarcou admiravelmente partindo do que chama, com o próprio
Cézanne, esses azuizinhos, esses
marronzinhos, esses branquinhos, esses toques que chovem do pincel do
pintor”. ( p.107)
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CARAVAGGIO
“[falta página 108] ... vamos que o
sucesso de tal empresa não implica em nada de as uvas serem admiravelmente
reproduzidas, tal como as que podemos ver na cesta que segura o Baco de Caravaggio, nos Uffizzi. Se as
uvas fossem assim, é pouco provável que os pássaros se tivessem enganado, pois
por que veriam os pássaros uvas nesse estilo que força as coisas? Deve haver
ali algo de mais reduzido, de mais próximo do signo, no que pode constituir
para os pássaros a uva como sua presa. Mas o exemplo oposto de Parrasios torna
claro que ao querer enganar um homem, o que lhe apresentamos é a pintura de uma
cortina, quer dizer, de algo mais além do qual ele quer ver”.(p.109)
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MATISSE
“Voltamos agora aos azuizinhos, branquinhos, marronzinhos de Cézanne, ou ainda ao que
Maurice Merleau-Ponty de modo tão bonito põe como exemplo numa passagem de Signos, a essa estranheza do filme em
câmera lenta onde se vê Matisse pintando. O importante é que o próprio Matisse
ficou baratinado com o filme. Maurice Merleau-Ponty sublinha o para (p.110)
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VAN GOGH
“Era preciso nada menos do que uma
experiência onde fosse tão intensamente reunida a universalidade que comporta o
que é próprio aos sapatos no universitário, com o que podia apresentar de
absolutamente particular a pessoa do professor D, para que eu possa convidá-los simplesmente a pensar agora nos
velhos sapatos de Van Gogh, dos quais Heidegger nos deu a imagem maravilhante
do que é uma obra de beleza.
É preciso que imaginem
as botinas do professor D ohne Begriff,
sem a concepção do universitário, sem relação alguma com sua personalidade tão
atraente, para que vocês comecem a ver as botinas de Van Gogh viverem,
adquirirem vida em sua incomensurável qualidade de belo”.
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SALVADOR DALI:
“Para produzir agora, numa
retrospectiva, os trabalhos de nossa entrada na psicanálise, relembraremos por
onde essa entrada se fez.
Médico e psiquiatra, havíamos introduzido, sob
a rubrica de “conhecimento paranoico”, algumas resultantes de um método clínico
de exaustão do qual nossa tese de medicina constituiu um ensaio<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]-->.
Mas do que evocar o grupo (Évolution Psychiatrique) que de bom
grado lhes acolheu a exposição, ou o eco que elas tiveram no meio surrealista,
onde se reatou um antigo vínculo por uma nova retomada – Dali, Crevel, a
paranoia crítica e o Claveci de Diderot, cujos rebentos encontram-se nos
primeiros números do Minotaure<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]--> -, apontaremos a
origem desse interesse.” (LACAN, 1998, Escritos, p.69)